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Fundamentos de Interpretação no Contrato de Seguro

28.10.2020 - Fonte: Maurício Gravina | Gravina Advogados

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Segundo o referencial de interpretação trazido ao Código Civil brasileiro, por meio da Lei da Liberdade Econômica, a hermenêutica no contrato merece considerar a boa-fé, as práticas do mercado e os usos do lugar da celebração.

Cuida-se de um processo cognitivo de percepção, classificações e legitimação do direito. Embora o relativismo destes movimentos lógicos, não é espaço de livre criação do direito, e assim não deve ser considerado no contrato de seguro, devendo observar a lei e a documentação contratual.

A «lei» é fonte primária do direito, produto da atividade legislativa do Estado, linha divisória entre o direito e a realidade fática . A «norma» é o sentido da lei, modo de ser do direito positivo, conteúdo que pressupõe vigência jurídica.

Dentre as características das leis de seguro destaca-se o caráter imperativo ou semi-imperativo de suas disposições, como instrumento de tutela da vulnerabilidade, que não admitem pacto em contrário, ressalvados os casos mais benéficos ao tomador, segurado ou beneficiário.

De modo geral, a interpretação dos contratos atua em dois planos: o do «sentido das palavras» e o da «intenção das partes», prevalecendo a última como critério de respeito à vontade contratual, observados os horizontes da contratação.

Se a compreensão pelas palavras é precisa, cumpre limitar-se ao sentido delas, desde que não contrarie a função do contrato , os bons costumes e a ordem pública . Este referencial da autonomia privada, vinculado aos deveres de boa-fé, confiança e bem-informar, dão tônica do Direito dos seguros na atualidade.

Havendo termos suscetíveis de dois ou mais sentidos, deve-se entender no mais conveniente à matéria do negócio, e que possa produzir efeitos , considerando o interesse, a garantia contratada e a tutela da vulnerabilidade do consumidor.

Se não é fluente a compreensão pelas palavras, supre-se a obscuridade por associações de cláusulas que permitam identificar o consenso contratual, segundo a lei, com primazia da vontade sobre o escrito, o que não significa criar novos direitos não estabelecidos entre as partes.

Para reconstituir a vontade contratual, leva-se em conta a formação do negócio e sua execução. Recorre-se às comunicações e ao comportamento das partes , antes, durante e após a conclusão do contrato, considerando publicidade, cartas, fax, e-mails, serviços, entre outros atos ou documentos que constituem meios de prova.

Mensagens publicitárias de produtos e serviços obrigam o fornecedor e integram o contrato que vem a ser celebrado, conforme o art. 30 do Código de Defesa do Consumidor. Em sentido semelhante, as leis de seguro falam da interpretação mais favorável ao tomador, segurado, beneficiário ou terceiro prejudicado.

Nos contratos consensuais, que não exigem forma escrita, toda comunicação ou comportamento a eles direcionados podem gerar obrigações , valendo o silêncio como expressão preceptiva, sendo que as leis de seguro distinguem algumas hipóteses de silêncio do segurador ou tomador.

O silêncio é considerado manifestação de vontade em diferentes ordenamentos jurídicos. Tem o valor de uma linguagem muda, espécie de declaração calada, cotejada caso a caso, conforme o Direito aplicável. A priori, seu emprego deve atender aos costumes locais.

Nos negócios formais, cuja lei requer instrumento escrito, este é condição de validade e seus anexos e rescisão seguem a mesma lógica da documentação escrita . No seguro importantes autores sustentam o caráter formal . Por razões históricas, é conhecida a «função normativa» da apólice para delimitar o objeto da contratação, especialmente os riscos cobertos e excluídos. Todavia, não se trata de uma exigência formal tipo “ad solemnitatem”, como na antiguidade, mas de meio de prova e consequência lógica do dever de informar do segurador, vinculado às exigências de conteúdo mínimo.

No Projeto de Lei brasileiro (PL 29/2017), segue-se a lógica formal para as cláusulas limitativas de direitos dos segurados: devem ser comprovadas por escrito e mediante interpretação restritiva, e o ônus da prova é do segurador quanto ao suporte fático.

No plano do «sentido das palavras», a tarefa do intérprete busca compreender o conteúdo das disposições pela combinação de cláusulas , impressos e leis de fundo, de forma que uns complementem os outros, atribuindo às expressões duvidosas o sentido resultante deste conjunto.

Para contextualizar expressões de sentido genérico, leva-se em conta o objeto do contrato: seguro de incêndio, roubo, responsabilidade civil, transporte, vida, acidentes pessoais etc., pois a substância do negócio é determinante para sua interpretação e lei aplicável . Se a hipótese se insere dentre algum dos tipos de seguros de danos e de pessoas, sua base jurídica irá conferir um referencial normativo à interpretação.

Além disso, qualquer que seja a generalidade de seus termos, não deve se compreender coisa distinta daquelas a que as partes se propuseram contratar. Vale referir o “princípio da especialidade do risco” , e as limitações do objeto ao conteúdo contratual, observando-se riscos cobertos e excluídos.

Nos negócios gratuitos ou benéficos, como doações, cessão de direitos, mutualidade, havendo dúvida deve prevalecer o sentido menos gravoso e em favor da menor transmissão de direitos .

Nos negócios onerosos, como nos seguros privados, em que há uma variada gama de operações econômicas entre as partes e seus interesses, a dúvida merece ser resolvida em favor da maior reciprocidade , dado o caráter sinalagmático a preservar.

Outro contexto é o da boa-fé , relevante princípio jurídico que aproxima o Direito da moral, e faz preponderar o verdadeiro sobre o falso. A boa-fé é um lugar especial no contrato de seguro, que depende de declarações encargos e confiança das partes. É uma espécie de crivo ético, que traz à tona a ideia naturalista de que a ordem jurídica não é referencial de si mesma, e sua estrutura está vinculada à justiça e à verdade “a primeira virtude” dos sistemas de pensamento.

A boa-fé atua sobre o sistema de nulidades, sendo instrumento relevante ao direito das obrigações, com destaque na proteção da vulnerabilidade, relações de consumo, no processo e nos negócios em geral, especialmente nos contratos à distância ou por condições gerais.

Outra fórmula conhecida, desde o Código de Napoleão, diz que a cláusula obscura inserida por um dos contratantes não deve favorecer quem ocasionou a obscuridade. É a interpretação contra o predisponente , prevista nas leis do Direito moderno e na orientação dos Tribunais.

Com relação à cláusula arbitral, deve ser redigida por escrito. Confere ao árbitro um poder específico para decidir sobre a validade da cláusula e instauração da arbitragem . A sentença arbitral, como se sabe, equivale às decisões prolatadas pelos órgãos jurisdicionais e, quando condenatória, constitui título executivo . Segundo o PL 29/2017, a arbitragem deverá ser realizada no Brasil e sujeita à normas do Direito brasileiro.

No que respeita à análise do conteúdo contratual, não se espera mobilidade de interpretação e integração ao ponto de fazer valer circunstâncias não contempladas em lei ou nas cláusulas contratuais. Esta limitação é ainda mais evidente quando estas disposições são capazes de encerrar um entendimento claro (interpretatio cessat in claris) . Cumpre respeitar o objeto contatual, segundo as garantias contratadas.

Fala-se do princípio da especialidade do risco , ao encontro das exigências da contratação de massa, prevendo riscos cobertos e excluídos, e os pertinentes limites do contrato «lex contractus». A limitação é o traço distintivo da especialidade do risco, que pressupõe a descrição das garantias contratadas, com a consequente previsibilidade do objeto do seguro.

O intérprete deve cingir-se aos horizontes do contrato, contexto em que a documentação serve como referencial de unidade interpretativa, segundo o objeto de cada tipo de seguro, considerando-se a tutela da vulnerabilidade.

Restrições dessa natureza também derivam do respeito ao princípio da mutualidade. O art. 59 do PL 29/2017 com propriedade sustenta que o contrato não pode ser interpretado ou executado em prejuízo da coletividade de segurados.

Outro contexto é o da jurisprudência. Julgados ou súmulas vinculantes estão cada vez mais presentes no Direito dos seguros, com eficácia cogente, inclusive frente aos Tribunais inferiores ou ao Poder Público , o que torna necessário o estudo da jurisprudência. Com relação à força dos precedentes judiciais, vale citar a norma espanhola pela qual, quando o Tribunal Supremo declara a nulidade de alguma das cláusulas ou condições gerais, a Administração Pública obrigará os seguradores a modificar cláusulas idênticas.

Na recente reforma do Código de Processo Civil brasileiro reforçou-se a missão dos Tribunais no sentido de uniformizar e manter estável, coerente e íntegra a sua jurisprudência (art. 926, do CPC), sendo que juízes e tribunais devem observar precedentes obrigatórios (art. 927 do CPC).

Nesse macroambiente jurídico, por fim, vale referir a interpretação conforme a Constituição, standard presente no contexto das nações, que leva em conta a unidade da ordem jurídica e a vinculação inafastável à interpretação constitucional.

Dentre outros, consideramos oportuno recordar estes valores de interpretação nos negócios jurídicos, indutores de desenvolvimento e da confiança na atuação do Direito dos seguros e na autorregulação pelos particulares.

 

Por Maurício Salomoni Gravina | Gravina Advogados


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